Excerto de uma cegada da Aldeia do Meco, brincando com o característico "falar pexito" dos pescadores de Sesimbra, retratando as fugazes relações amorosas que se estabeleciam entre pexitos e estrangeiras. Os cegantes são João Pinhal (à esquerda) e Virgolino; o autor do texto foi o Mário Rui, actual proprietário do restaurante Celmar, no Meco. — Eh pá, tu vieste cedo hoje! — Cedo, eu? Ora esta! Tu é que vieste tarde! Só queres é estar do quente! Então não sabes que não se pode estar muito tempo desse mar?! — Tu na sabes!... Então quer ver que eu aqui é que tou melhor? — Querias só para ti, sabes! — Eh anzol malvado! Olha lá para o bico que isto tem! — Mas tu ainda não estás acordado? Queres tu ver bem! — Eh pá, olha que a gente veio para aqui para um sitio muito bom, está bem? mesmo aqui ao pé do mar — E vê as banhistas passar! — Então e quando as gajas passam aqui a mostrar as pernas... Tu já vistes que um gajo que até dobra as cavernas?! — Aconteceu-me uma do Domingo, tu havias de ver! Escuta lá, não vieste trabalhar, pois não? Ah, não vieste, não! — Eh homem, conta lá, ou estás a fazer "suspense" — Vê lá tu que eu ainda não me convenço! — Mas então conta lá que lance foi esse! — Apareceu-me aqui uma "hélice", que tu não me digas mas é nada! — Se calhar alguma que andava pr'aí almariada!... — Almariada? Uma luxemburguesa! — Como é que a percebias então? — Eh pá, então não se percebe bem? A gente fala com as mãos e elas também! — Mas o que é que ela queria? Queria aprender a safar machucha? — Ah pá! O que ela queria era uma chucha, pá! — Então e tu não lha deste? — Não lha dei? Aí é que foi o melhor! — Oh pá, mas então! Conta-me lá isso em pormenor! — Aí, ela já falava um bocadinho em Português, e perguntou-me o nome. E eu pus logo o preto no branco, e disse que me chamava Zé. Mas eu cá sou conhecido é pelo Zé Tamanco... — Então e como chamava-se ela então? — Espera aí! E diz-me ela assim: "Eu, sou Marianne". — O quê? Mariana? — "Oui, oui"... e riu-se, riu-se. Digo eu assim: pronto, tá por cima d'água! — É pá, e estava mesmo por cima d'água? — Éh pá, nem foi preciso xalavar! — Tu não me digas que saltou logo para bordo? — Logo para bordo! — Então, conta lá o resto! — Aí, a gente falou mais um bocado, ela a mexer no anzol, e eu a mexer na pita... — Então e tu eras capaz de empatar o anzol direito? — Se estava direito! Tu não me digas mas é nada, tá bem? — Então quer dizer que aí que já não te dava cordel... — E combinamos logo para ir para o hotel! — Eh pá, então para que horas foi o aviso? — Ela marcou para as 10, mas eu às 8 é que já lá tava! — Então e foste logo com 2 horas de avanço? — Não! sabes! Não que não fui logo marcar lance! Notas: - Dobrar as "cavernas": as costelas; tem um sentido equivalente a "cortar a respiração"; - "Lance": pescaria; - "Hélice": mulher escultural, muito bonita; - Pôr o "preto no branco": esclarecer, clarificar; por analogia com passar a escrito: colocar a tinta preta no papel branco; - "Safar machucha": desenredar as linhas de pesca; antigamente, actividade usualmente feita pelos pescadores nas ruas de Sesimbra; - Estar "por cima d'água": estar um problema quase resolvido (neste caso, o "engate" da estrangeira); provavelmente por analogia com a pesca de peixe grande, que procura a fundura quando se sente fisgado, sendo necessárias arte a paciência para o trazer até à superfície e colocar a bordo; - Xalavar: rede parecida com o camaroeiro, com que se auxilia a acção de transferir o peixe da água para dentro de um barco; - Mexer na "pita": pita é o nome como em Sesimbra se designa o fio de nylon; o nome foi herdado de um outro fio usado anteriormente, fabricado com as fibras da piteira; - "Dar cordel": dar conversa; entreter com conversa fingindo que se está a dar crédito ao que se ouve; tem o mesmo sentido de "conversa fiada" (dar fio = dar cordel); - "Aviso": hora marcada para a companha de pescadores partir para o mar; Palavras e expressões usadas com sentido metafórico: estar no quente — estar nesse mar — dobrar as cavernas — lance — hélice — querer (dar) chucha — pôr o preto no branco — estar por cima de água — xalavar — saltar para bordo — mexer no anzol / na pita — empatar o anzol — estar (o anzol) direito — dar cordel — aviso. |
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