quinta-feira, janeiro 15, 2009


Excerto de uma cegada da Aldeia do Meco, brincando com o característico "falar pexito" dos pescadores de Sesimbra, retratando as fugazes relações amorosas que se estabeleciam entre pexitos e estrangeiras. Os cegantes são João Pinhal (à esquerda) e Virgolino; o autor do texto foi o Mário Rui, actual proprietário do restaurante Celmar, no Meco.

— Eh pá, tu vieste cedo hoje!
— Cedo, eu? Ora esta! Tu é que vieste tarde! Só queres é estar do quente! Então não sabes que não se pode estar muito tempo desse mar?!
— Tu na sabes!... Então quer ver que eu aqui é que tou melhor?
— Querias só para ti, sabes!
— Eh anzol malvado! Olha lá para o bico que isto tem!
— Mas tu ainda não estás acordado? Queres tu ver bem!
— Eh pá, olha que a gente veio para aqui para um sitio muito bom, está bem? mesmo aqui ao pé do mar
— E vê as banhistas passar!
— Então e quando as gajas passam aqui a mostrar as pernas... Tu já vistes que um gajo que até dobra as cavernas?!
— Aconteceu-me uma do Domingo, tu havias de ver! Escuta lá, não vieste trabalhar, pois não? Ah, não vieste, não!
— Eh homem, conta lá, ou estás a fazer "suspense"
— Vê lá tu que eu ainda não me convenço!
— Mas então conta lá que lance foi esse!
— Apareceu-me aqui uma "hélice", que tu não me digas mas é nada!
— Se calhar alguma que andava pr'aí almariada!...
— Almariada? Uma luxemburguesa!
— Como é que a percebias então?
— Eh pá, então não se percebe bem? A gente fala com as mãos e elas também!
— Mas o que é que ela queria? Queria aprender a safar machucha?
— Ah pá! O que ela queria era uma chucha, pá!
— Então e tu não lha deste?
— Não lha dei? Aí é que foi o melhor!
— Oh pá, mas então! Conta-me lá isso em pormenor!
— Aí, ela já falava um bocadinho em Português, e perguntou-me o nome. E eu pus logo o preto no branco, e disse que me chamava Zé. Mas eu cá sou conhecido é pelo Zé Tamanco...
— Então e como chamava-se ela então?
— Espera aí! E diz-me ela assim: "Eu, sou Marianne". — O quê? Mariana? — "Oui, oui"... e riu-se, riu-se. Digo eu assim: pronto, tá por cima d'água!
— É pá, e estava mesmo por cima d'água?
— Éh pá, nem foi preciso xalavar!
— Tu não me digas que saltou logo para bordo?
— Logo para bordo!
— Então, conta lá o resto!
— Aí, a gente falou mais um bocado, ela a mexer no anzol, e eu a mexer na pita...
— Então e tu eras capaz de empatar o anzol direito?
— Se estava direito! Tu não me digas mas é nada, tá bem?
— Então quer dizer que aí que já não te dava cordel...
— E combinamos logo para ir para o hotel!
— Eh pá, então para que horas foi o aviso?
— Ela marcou para as 10, mas eu às 8 é que já lá tava!
— Então e foste logo com 2 horas de avanço?
— Não! sabes! Não que não fui logo marcar lance!


Notas:
- Dobrar as "cavernas": as costelas; tem um sentido equivalente a "cortar a respiração";
- "Lance": pescaria;
- "Hélice": mulher escultural, muito bonita;
- Pôr o "preto no branco": esclarecer, clarificar; por analogia com passar a escrito: colocar a tinta preta no papel branco;
- "Safar machucha": desenredar as linhas de pesca; antigamente, actividade usualmente feita pelos pescadores nas ruas de Sesimbra;
- Estar "por cima d'água": estar um problema quase resolvido (neste caso, o "engate" da estrangeira); provavelmente por analogia com a pesca de peixe grande, que procura a fundura quando se sente fisgado, sendo necessárias arte a paciência para o trazer até à superfície e colocar a bordo;
- Xalavar: rede parecida com o camaroeiro, com que se auxilia a acção de transferir o peixe da água para dentro de um barco;
- Mexer na "pita": pita é o nome como em Sesimbra se designa o fio de nylon; o nome foi herdado de um outro fio usado anteriormente, fabricado com as fibras da piteira;
- "Dar cordel": dar conversa; entreter com conversa fingindo que se está a dar crédito ao que se ouve; tem o mesmo sentido de "conversa fiada" (dar fio = dar cordel);
- "Aviso": hora marcada para a companha de pescadores partir para o mar;

Palavras e expressões usadas com sentido metafórico: estar no quente — estar nesse mar — dobrar as cavernas — lance — hélice — querer (dar) chucha — pôr o preto no branco — estar por cima de água — xalavar — saltar para bordo — mexer no anzol / na pita — empatar o anzol — estar (o anzol) direito — dar cordel — aviso.