Cezimbra

     O consultório do Dr. Carvalho compunha-se de uma sala de espera, com a botica homeopática ao fundo, separada dos clientes por um balcão, e dum gabinete de consulta.
     As essências aplicadas na nova medicina estavam instaladas, num grande armário envidraçado, com frascos rotulados.
     Na cimalha, uma faixa azul com letras douradas ostentava o lema dos homeopatas: "Similia similibus curantur", que em vulgar significa: "os semelhantes curam-se pelos semelhantes".
     O Dr. Carvalho era um macaísta, com todas as características do chinês vestido à europeia.
     Usava a comprida sobrecasaca, indispensável à indumentária médica da época, completada na rua pelo chapéu alto.
     Os bigodes descaídos em arco aos cantos da boca davam-lhe um ar de bruxo. Era mesmo conhecido pelo Dr. Bruxo.
     D. Cândida sentou-se entre os outros consulentes e encetou conversação com as senhoras.
     A maioria não ia consultar o médico, mas o Dr. Bruxo sobre a psique de noivos ou noivas.
     Era exímio fisionomista o Dr. Carvalho. Acertava sempre com o carácter das pessoas de quem examinava os retratos.
     Bom católico e, portanto, bom conselheiro, aprovava ou reprovava os casamentos conforme o que lia nas fisionomias.
     D. Cândida fartou-se de ver retratos de rapazes e raparigas até lhe chegar a vez e o Quim de assediar os circunstantes com perguntas indiscretas.

     Depois dos cumprimentos da etiqueta, D. Cândida começou:
     – Sr. Dr., eu não sou uma doente, felizmente. Venho para ouvir a sua opinião sobre este meu filho.
     O Quim, que não podia estar quieto, ia mexendo em tudo que estava sobre a secretária até que a mãe o repreendeu. Então passou a fazer caretas ao Doutor.
     – Sr. Dr., prosseguiu D. Cândida, veja se descobre "a quem sai este rapaz?".
     – Que interessa à senhora saber a quem sai esse rapaz?! Julgo mais proveitoso conhecer o que sairá esse rapaz!...
     É o que vou investigar para a esclarecer e preconizar-lhe as directrizes a dar à sua educação.
     – Muito obrigado, Sr. Dr., também me interessa saber "a quem sai o rapaz" porque tenho duas filhas, uma branca, outra morena, e ambas se parecem comigo em diversas idades da minha vida.
     – Como observou esse fenómeno?
     – Numa colecção de retratos. Minha mãe, todos os anos, mandou-me fotografar. No meu retrato de oito anos todos vêem a branca e no de dez a morena.
     O rapaz não se parece fisionomicamente comigo, não é verdade?
     – Deixemos os traços fisionómicos e vamos investigar os psicológicos, que são mais importantes. Em que dia nasceu?
     – A 13 de Julho de 1876, às 11 horas, uma quinta-feira.
Foi o meu 13.º filho. O ano de 76 é formado por algarismos que somam 13 e bissexto. Estas circunstâncias preocupam-me porque vejo nelas indícios de calistice agravados pela coincidência do padre, que o baptizou, se chamar Calixto. O povo julga que o 13.º filho é santo ou bruxo…
     Tudo isto foi dito com grande excitação nervosa.
     – Calma, minha senhora, muita calma. As deduções que a senhora e o povo tiram das premissas que forneceu constituem meras fantasias. Eu vou, pelos ensinamentos que a Astrologia me forneceu, dizer-lhe o futuro carácter do seu rapaz e suas consequências.
     – Astrologia?!... Então os astros dão-nos os ensinamentos sobre o carácter.
     – Certamente. A astrologia é ciência muito antiga.      Basta a sua grande antiguidade, sem nunca ter sido esquecida, para nos convencer que é verdadeira. Começou a ser praticada nas mais antigas civilizações da Índia e da China. Foi introduzida na Grécia pelo sacerdote caldeu Beroze e por Endoxe de Cuide, que a tinham estudado no Egipto, onde fora iniciada três séculos antes de Cristo.
     Da Grécia passou a Roma, como as outras ciências e artes.
     O Dr. concentrou-se e D. Cândida emudeceu estática a contemplá-lo.
     O Quim mantinha-se silencioso. Apoiara o cotovelo direito sobre um ângulo da secretária. Com o indicador metido na venta dirigia o olhar esgazeado, alternadamente, ora para a mãe, ora para o médico. Pelo rictus da boca, movimentos das sobrancelhas e franzir da testa, parecia ter a percepção de que lhe talhavam o destino. Uns movimentos quase imperceptíveis, das pernas, indicavam que o garoto não se poderia manter por muito tempo sem ir lá fora.
     – O carácter é bastante interessante, um tanto complicado mas de fácil decifração.
     – Como nasceu em setenta e seis deve ter sorte porque este ano foi regido por Júpiter. Treze de Julho fica no signo de Câncer, foi portanto muito influenciado pela Lua e por Mercúrio, que produz agitação. Às onze horas reina Vénus, que dá vida longa. Será sonhador, inconstante. Interessar-se-á mais pelo passado que pelo presente. O futuro não o preocupará. Terá muita intuição.      Será dado a pressentimentos e mudanças de situações. Terá espírito irrequieto, caprichoso. Em literatura gostará do fantástico e irreal e do que verse o amor. Casará algumas vezes.
     – Pobre Quim! A sorte vinga-se dele.
     – A Lua tornou-o impressionável, sensitivo, susceptível. Mentalmente será um vagabundo.
     – Vagabundo, Sr. Doutor?!...
     – Vagabundo mental. Quer dizer que ora se interessará pela ciência, ora pela arte, e nestes dois ramos do saber humano saltitará como uma arvéola sem se fixar. Só o entusiasmará o que lhe der prazer espiritual. O prazer material muito fugazmente.
     – Quer dizer, Sr. Dr., que nunca encontrará a sua vocação.
     – Dificilmente. Toda a sua tendência será para encarar os problemas da vida por aspectos opostos ao sentir das maiorias. Mostrará grande      desdém por tudo e por todos com quem não concorde, mas nunca animosidade.
     – Um espírito de contradição?!... Já o é, Senhor Doutor.
     – Nas controvérsias há-de opor-se às opiniões alheias, o que lhe acarretará muitas inimizades. Viverá em guerra permanente com quem tiver de conviver.
     – Será por causa do apelido de família?
     – Também influi o apelido, não julgue que não.
     Dificilmente adquirirá amigos sinceros, por falta de qualidades de captação. Dirá sempre o que entender sem respeitos humanos. Se a senhora viver quando ele chegar à juventude, aconselhe-o a não se meter em negócios nem em política. Para isso, posso afirmar, não tem vocação. Será desastrosa a sua actuação nestas duas actividades.
     – Não tenha receio, Sr. Doutor, que eu não me esquecerei de o aconselhar a não se meter em política. Bem basta os desgostos que o mais velho me tem dado por causa dessa maldita.
     – O Quim há-de ser um sintónico, amante da vida, nas suas realizações. A vida intelectual sobrepuja nele a vida animal. Não nasceu para mandar nem para ser mandado. Os esquizóides, esses é que governam dentro da sua torre de marfim. Verdade seja que ele também não ambicionará postos de comando que o seu temperamento aborrece. Se obtiver dinheiro, de qualquer origem, não saberá conservá-lo.
     – Vai ser infeliz o meu filho!...
     – Talvez não. Nunca é infeliz quem vive a seu belo prazer. Pode seguir uma profissão liberal e independente como a minha. Demais, a felicidade ou infelicidade está dentro de nós. Vai ser ditoso algumas vezes e na adversidade terá a coragem necessária para se conformar.
     – Sr. Doutor, gostei muito de ouvir o que me disse. Deixar-lhe-ei tudo isso escrito, para ler caso eu morra antes de ele ser um homenzinho, mas, continuo na minha, gostava muito de saber: "a quem sai este rapaz?"
     – Visto que lhe falei dos povos da antiguidade, vou referir-me a um costume que chegou até nós pelas mesmas vias que a Astrologia.
     Os gregos, cultores da eugenia e grandes fanáticos do belo, tinham por hábito pôr nos gineceus pinturas ou esculturas de crianças bonitas para que as grávidas as olhassem com devoção. Acreditavam que a criança era influenciada, durante a gestação, pelo pensamento da mãe.
     Que quadros ou imagens tem no seu quarto de dormir?
     – À cabeceira tenho Nossa Senhora; aos pés, S. Miguel. Meu marido é um miguelista entusiasta, por isso tem na sala o retrato de El-Rei D. Miguel e no quarto o arcanjo.
     – Aí tem a explicação do caso. A senhora em decúbito vê melhor o diabo que está aos pés de S. Miguel, do que este, e daí a psicologia diabólica do pequeno na primeira infância.
     – E agora, Sr. Doutor?!... exclamou D. Cândida aterrorizada.
     – O remédio é transformar a tara diabólica em celestial, ou seja, obter a inversa do que aconteceu a Lúcifer, que era anjo da luz e, por sua soberba, foi condenado por Deus a ser o anjo das trevas.
     – Mas como?! A quem impetrar o milagre?
     – Há em Campolide um colégio de Jesuítas. Eles são especialistas nesses milagres. Interne-o lá e, passados alguns anos, o pequeno estará miraculado.
     D. Cândida lançou na salva de prata meia libra em ouro, em vez dos cinco tostões, preço da consulta, e retirou-se convencida e satisfeita com o prognóstico.
     Em cinco de Outubro de 1886, o Quim era internado no Colégio de Maria Santíssima Imaculada em Campolide, com o número setenta e três, por ser um republicano assanhado.
     O pai, ao entregá-lo ao Reitor, o Padre Campo Santo, recomendou:
     – Se não puderem fazer dele um homem, mandem-me a pele para tambor.
     – São estes os que têm acreditado o nosso colégio e não as moscas mortas, AD MAJOREM DEI GLORIAM.
     Ao longe ouvia-se entoar, em coro, o hino do reitor:

"S. Joaquim e S. José
Nos cobriram com seu manto.
Sou Joaquim José d'Abreu
Campolide é Campo Santo".

Joaquim Preto Guerra (Rumina)