(...) Livro da fábrica das naus [clique]
E mais, as proas delgadas çafurdam mais que as largas. Também para romper o mar é melhor a proa larga, e pesada [-] aplicar o que diz Aristóteles, que todos os animais que têm as partes dianteiras mais pesadas, por isso nascem com elas por diante, porque o peso delas rompe e abre caminho. Mas porque a grossa parece contra razão, abrir melhor o caminho, que a delgada, quero alegar alguns exemplos, nos quais a natureza, e a experiência mostram ser isto conforme a razão, e não contra ela.
O primeiro se vê no nascimento dos homens, e dos outros animais acima ditos, que nascem com as partes mais grossas por diante: e assim dos ovos das galinhas, e outras aves, que também assim nascem. E a razão é, que com aquelas partes mais grossas abrem o caminho, pelo qual as outras mais delgadas passam facilmente. [-] quero ainda declarar mais, em uma coisa que os homens do mar trazem outras mãos.
Acostumam levar mastros à toa pelo mar, e levam-nos com as cabeças grossas por diante, porque assim vão mais levemente, que com as pontas delgadas. O porque, é, que a ponta delgada não abre mais lugar que por onde esta cabe: e logo trás ela vem outra parte do mastro mais grossa, que requer lugar mais largo, e é-lhe necessário abri-lo, e para isso por força; e logo atrás aquela vem outra mais grossa, que faz outro tanto, e logo outra, e assim outras muitas até ao cabo: as quais sempre acham resistência, e dão trabalho a que leva o mastro: o que não fazem, se levam a cabeça grossa por diante: porque aquela abre logo lugar, e caminho, que basta para ela, e para todas as outras partes daquele mastro, que vem atrás, não sendo mais grossas do que ela.
O mesmo vemos usar nas verrumas, e trados dos carpinteiros, que nas cabeças com que abrem os buracos são mais grossas para o mesmo efeito de abrir o caminho fraco.
Os peixes, que são exemplo dos navios, os mais deles têm as partes dianteiras mais grossas que as de trás: em especial, ruivos, enxarrocos e pargos, que em comparação dos corpos, têm as cabeças muito grandes e a razão disto, diz Aristóteles, que é, assim nos peixes como nas aves, e noutros animais, aos quais deu a natureza as partes dianteiras mais grossas, para abrirem o ar e a água diante dos restos dos corpos, por se poder passar facilmente nadando, voando, e andando, por o que a natureza ordenou nas alimárias naturalmente, com razão o imita a nossa arte na fábrica das naus, fazendo-lhe as proas grossas, para abrirem as águas, e desimpedirem o caminho a todo o resto da nau para que possa passar, e navegar sem impedimento, portanto não pareça este costume contra razão, pois a natureza o usa, e do seu uso é tomado.
Mas porém uma coisa hão-de notar, que Aristóteles aponta, e diz, que sem embargo, que a natureza deu aos animais as partes dianteiras mais grossas, e cheias, também lhes deu diante cabeças, e bicos, e aos peixes focinhos agudos para começarem abrir: e assim o imita o artifício, porque as verrumas, e os escopros primeiro têm uma ponta aguda, ou gume para começar a abrir: porque doutra feição, seria dificultoso abrir corpos maciços, e duros, com cabeças de todo rombas.
E assim também será dificultoso, as proas dos navios sendo rombas romper o mar, em especial, quando andar bravo e grosso, que é o tempo em que mais cumpre rompê-lo, e escapar dele: mas antes então, se a proa for muito romba, amontoará diante de si as ondas, e afogar-se-á entre elas, e não poderá surdir. Portanto, sejam as proas cheias, mas não façam testa, nem releixo algum, em que o mar possa investir: e o cheio da proa seja no alto ao lume da água, porque assim além de não estorvar o caminho, também é bom para não çafurdar, nem meter o focinho no mar, e por baixo tenha o talhamar apanhado, de maneira que corte, e espida a reversa para o governalho.
Para vir a proa na sua forma devida, conforme o que fica dito, será o seu liame ordenado desta maneira. Logo em saindo da almogama conformar seja como o do fundo, e irá recolhendo pouco e pouco, sem fazer releixo: porém será de tal modo , que aos dois e três pares comece a fazer cantos agudos para baixo, e cerrando os cantos sobre o enchimento lançará os pés das buçardas maciços até à roda.
E de cima do enchimento começarão a subir os braços das buçardas recolhidos, e não muito arcados: porque naquela parte há-de ser a proa apanhada, até ao terço da altura da roda: e daí irão espalhando em arcos quase circulares, de feição, que não enchendo a proa, e fazendo bochechas.
Este liame de proa se chama buçardas; e parece que foi tirado este nome de outro latino, que é bucca [?], o qual quer dizer bochecha: e se assim é, podemos conjecturar, que já em tempo dos latinos, quando eles puseram este nome a este liame, aconselharam também fazer as proas cheias, e bochechudas, e que não é isto invenção nova, mas que a razão que agora ensina ser isto conveniente o ensinou aos antigos antes de nós; porque a razão se perpetua, e sempre uma, quando ela é acertada, como esta é; senão que às vezes não é bem entendida, nem usada.
Quero dizer, que por que a razão diga ao entendimento, que as proas dos navios devem ser grossas e cheias, nem por isso sabem todos usar desta razão limitadamente, como ela quer: porque uns navios querem mais, outros menos, e os entendimentos são desvairados, e não aplicam todos a doutrina desta maneira. Portanto olhem os nossos carpinteiros o que fazem, e não façam em lugar de bochechas nalgas: porque além de ser feio, é prejudicial ao navegar. |
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