quarta-feira, julho 05, 2006

D. Eugénia, Duquesa de Palmela


D.Eugénia Holstein, Duquesa de Palmela

    «A revolução popular do Minho, contida em vão pelas autoridades por leis excepcionais, combatida pelo exército, por todas as coerções físicas ordinárias e extraordinárias que é uso empregar entre nós em semelhantes casos cresceu, exacerbou-se e lavrou por todo o reino. O ministério demitiu-se, e o duque de Palmela foi chamado a organizar uma nova administração.

    Eram fins de Maio; toda a família se achava na quinta de Calhariz, gozando os últimos dias da Primavera, que ali é deliciosa, quando a inesperada nova veio assustar e afligir a duquesa, que naquele sossego, rodeada de seus filhos e de alguns amigos íntimos, procurava enganar os pressentimentos do mal que interiormente a consumia.

    Nunca cedeu com mais violência à voz imperiosa do dever. O duque de Palmela era o nome que estava em todas as bocas. Com mais ou menos sinceridade de uns ou de outros, ninguém havia que o não chamasse., que não declarasse ser ele o único homem a quem podia incumbir-se o perigoso e difícil encargo de moderar e dirigir uma revolução, que pelos menos suspeitos era reconhecida não poder já combater-se. A duquesa cedeu, fez calar os seus terrores, e impôs à sua alma este novo sacrifício, que bem antevia lhe tinha de custar mais que nenhum.

    Criada e nutrida em todas as tradições, e digamos ainda, em todos os preconceitos da sua raça, sinceramente convencida de que a origem gloriosa da sua família, se lhe impunha maiores obrigações na sociedade, também lhe dava superiores direitos a um respeito e consideração, que o ciúme popular nem sempre nega, nem sempre concede – é ciúme, e como tal justo e injusto ao mesmo tempo – a duquesa, como verdadeira fidalga, incomodava-se mais com que subissem até ela algumas mediocridades ambiciosas, do que lhe custava descer ela ao nível de todos. Não há superioridade verdadeira, aristocracia de nascimento ou de merecimento que assim não sinta. E para quem sente assim, não são as ideias de progresso que repugnam; não é a liberdade, não é a igualdade que são odiosas: o que os ofende é o falso liberalismo dos demagogos, desses Titãs da mitologia moderna, que põem o Pelion sobre os Ossa dos ciúmes e das iras populares para subirem eles, e eles sós, a um Olimpo, que tão somente odeiam enquanto lá não chegam.

    Mas, além desse tão natural, e se precisa desculpa, tão desculpável sentimento – a duquesa era sinceramente cristã; e como tal, os princípios de liberdade, um governo para bem de todos e no interesse de todos lhe parecia o melhor governo. Fiel à monarquia, adida às tradições da sua classe, não compreendia, contudo, que as classes pobres houvessem, precisassem de ser condenadas ao abandono por isso; acreditava que o evangelho podia ser realizado, que as leis do Crucificado podiam e deviam ser as leis do mundo.

    Pode dizer-se que a duquesa de Palmela acreditou que a revolução do Minho era uma genuína efusão de sentimentos do povo português. Liberal na mais nobre acepção da palavra suportou com paciência os infinitos desgostos que lhe trouxe o angustiado ministério de seu marido, nos quatro meses que durou; depois na reacção de 6 de Outubro; e por fim na longa série de incómodos e aflições que dessa época em diante teve de sofrer até ao fim da vida.

    Mandado sair peremptoriamente de Portugal, deixou o duque a sua mulher já em muito mau estado de saúde; mas estava longe de saber que rápidos eram os progressos que o seu mal fazia. Quando por informação confidencial dos facultativos o veio a conhecer, já o rogo para que se fosse reunir a ele estava feito; já ele impaciente se tinha posto a caminho, apesar da estação que adiantava, e de seus padecimentos, que agravavam de dia para dia.

    Tinha-lhe custado tanto esta última separação pelas circunstâncias e injustiças que a motivaram; passara-se em tantos cuidados e desgostos naquele tempo, no meio da guerra civil, com o espectáculo das misérias e desgraças, que a acompanham, diante dos olhos – vendo a morte e o sangue por toda a parte, a fome nas ruas da capital – batendo-lhe à porta como a porta mais bem parada de Lisboa – tudo se juntava às saudades do marido para desejar partir, custasse o que custasse.

    Não se foi contudo sem deixar, como sempre, os meios de acudir aos seus pobres, sem derramar muita esmola, muita caridade, muita consolação pelos necessitados de todas as classes e graduações que a ficavam chorando. Os infelizes prisioneiros de Torres Vedras que inopinadamente, e sem nenhuns meios tantos deles, eram mandados para o degredo de Angola, foram largamente providos de todo o auxílio que era possível dar-lhes.

    Nenhum espírito de partido a animou: eram infelizes e perseguidos; tanto bastava. Se alguém fosse tão bárbaro – realmente o não creio – que lhe fizesse um crime da sua caridade, dar-lhe-ia, verdade seja, um motivo demais para o ânimo independente e mal sofrido da duquesa. Depois do combate de Setúbal mandou repartir a roupa branca da sua quinta de Calhariz pelos feridos de um e outro lado.Os alimentos que de contínuo distribuía em sua casa; as quantias maiores e menores com que acudiu secretamente a indivíduos e famílias, não têm número.

    Em Julho partiu para Inglaterra e daí passou a França.»

Excerto da "Memória histórica da
Excelentíssima Duquesa de Palmela,
D. Eugénia Francisca Xavier Teles da Gama"
por J. B. de Almeida Garrett – 1848



A Revolução do Minho, ou Maria da Fonte, ocorreu na Primavera de 1846 contra o governo cartista presidido por Costa Cabral. A revolta resultou das tensões sociais remanescentes das guerras liberais, exacerbadas pelo grande descontentamento popular gerado pelas novas leis de recrutamento militar, por alterações fiscais e pela proibição de realizar enterros dentro de igrejas. Iniciou-se na zona de Póvoa do Lanhoso (Minho) por uma sublevação popular e propagou-se depois ao resto do país, provocando a substituição do governo de Costa Cabral por um presidido por Pedro de Sousa Holstein, o 1.º duque de Palmela. Quando, num golpe palaciano, conhecido pela "Emboscada", a 6 de Outubro daquele ano, a rainha D. Maria II, demite o governo e nomeia o Duque de Saldanha para constituir novo ministério, a insurreição reacende-se e desencadeia nova guerra civil, a "Patuleia".

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